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domingo, 3 de abril de 2016

Ratoeira!

Ratoeira - s.f. Armadilha para apanhar ratos, camundongos.
Fig. Cilada, traição.
Cair na ratoeira, ser vítima de uma cilada.


Introdução

Atenção: me prestei a escrever isto, então atenção: não se trata do belo, o belo anda sempre muito longe, nos chega através de telas de LCD e ondas de rádio. Isso aqui é sobre o desespero e sobre o terror diante da iminência da morte. Não, não tem consolo, palavras de luto ou de ordem: a morte chega e não há realmente maneira de lidar. Isso é uma carta de despedida que não será lida por seu destinatário. Melhor assim: talvez a carta lhe desse ainda sopros de vida que atrasariam sua ida. Atenção: não há compaixão diante da morte alheia, senão culpa. Atenção, muita atendção: aqui vão umas memórias que bem poderiam ser as tuas, mas não são. Também não se trata de memórias, essas invenções a que nos acostumamos ouvir — ontem choramingavam os setenta como hoje sentimos falta dos 90, e que caralho!, aquele tempo de penteados permanentes e gel nos cabelos parece ter voltado. É como se sentíssemos falta, mas não queremos que o tempo volte. Jaquetas jeans desbotadas, saltos-plataforma, música importada, os nossos sonhos disformes, não precisa voltar nada. Sabemos bem como foram os 90, sabemos o quanto perdemos, vimos nossos pais saindo de casa, nossas mães enlouquecendo, aprendemos a beber álcool e fomos nós mesmos os loucos da década seguinte: vimos a virada do milênio com alguma esperança hipócrita nos olhos. Acaso não sabíamos? Mas a esperança sobrevive, pungente, como se não vivêssemos de outra coisa que não seja esperar. Acontece que não posso esperar para escrever estas linhas, não posso esperar para me despedir o terror que me assola exatamente hoje me exige palavras que sejam doídas sim, sujas, que sejam palavras bandidas que roubem daqui de dentro esse buraco escuro e úmido que não pode ser chamado saudade, posto que ainda estamos todos aqui, mas que talvez possa ser chamado solidão. Mas solidão entre próximos. Entre vivos. Atenção: aqui vai uma despedida de morte para quem ainda não morreu. Ao contrário de mim, que morri faz tempo. Atenção, muita atenção: não há nada para procurar aqui. Não é possível alguém perder seu tempo neste tipo de busca: o que segue é meu, somente meu, e se compartilho é para permanecer neste ninho egoísta de quem escrevo. Eu escrevo, eu compartilho e ninguém tem nada a ver com isso. Atenção: este é um adeus, um até logo sem volta. Fica mais, por favor. Precisamos de mais duas vidas para nos acertarmos. Precisamos de muito mais. A vida é breve, afinal. Quando foi que sentiste o primeiro incômodo na garganta?

Ratoeira

Este se pretende um poema de desatino, de solidão, de gargalhada. Pretende-se aqui escrever um poema de desvario e de saudade sobre alguns cantos dessa cidade que não aparece nos mapas nem nos cartões postais, um poema sombrio e com medo, um poema de receios, um poema de saudade não pelo que foi, mas pelo que virá. Hoje começa o fim, parece. O fim começou já faz tempo. Hoje começa a ser escrito um poema sobre a derradeira, a infeliz, a certeira. Ratoeira. Foi o nome com que lhe batizei. Ratoeira por esse engano, essa atração. Eles dizem: Venha para a vida. Eles dizem, nós acreditamos porque queremos. Unicamente porque queremos. Não há nem haverá saída. Eles dizem que pode ser fácil se se acreditar com todas as forças disponíveis, todas as forças possíveis. Quem ouve o que eles dizem, afinal?

Somos poemas num varal distante, pai. Penduraram-nos ali para secar ou para tirar nosso cheiro de mofo. O que dizemos, quem sabe? Quem poderia entender tanto silêncio, tanto olhar fugidio. Escuta: é o silêncio pedindo mais, pedindo ajuda.

Primeira vez que morreste, vinte anos atrás, eu ainda não sabia que não morre quem se ausenta — ou quem sabe tenha entendido que morte é ausência, ainda não decidi. Acontece que senti saudade, pai, naquelas tardes ensolaradas com bicicletas e poeira da estrada emporcalhando meus chinelos de adolescente suburbano. Eu era um menino que precisava dum pai que sentia falta dum menino, eu, e por isso corri atrás. Compravas-me uns brinquedos. Não. Comprava uns carrinhos com teu dinheiro, que buscava semana-em-semana, na loja de Seo João, o de bigodes: carrinhos de metal são mais resistentes. Oito por pacote: Não precisa embrulhar que já vão ser usados. A mãe se assustava com as marteladas, com o fogo, o cheiro de plástico derretido: Pra quê isso? Se não for de verdade, não vale nada. Criava incêndios, criava desastres, tudo isso pra desmentir meu próprio desastre, pai: era só saudade.

Daí por muito tempo silêncio: calmaria intranqüila nas noites que chegam mais cedo: aquela casa me dói e me doía: nunca esqueci das escadas que tive de descer um dia, nunca esqueci da porta que tive que manter fechada para que não entrasses por ela, pai. Eu tinha medo, pai. Eu ainda não sabia — depois sim, depois seria eu quem te repetiria —, eu ainda não sabia como lidar com um homem bêbado que chorava a morte do pai, que chorava a saudade do pai. Estive lá, estive lá quando em hum mil novecentos e noventa e três recebemos a notícia, não sei se por telefone, quem falava era tio Automar: Avisa o Alfredo que o pai morreu. Avisa o Alfredo que o pai morreu. Avisa o Alfredo que o pai morreu.

Pergunto: quem eras, Alfredo? Quem era teu pai? Quem sou eu?

O espelho e os olhares da mãe me dizem que pareço contigo: um silêncio obsequioso, um cigarro aceso à espera de um café morno, um repouso sincero no cruzar de pernas sobre as coxas.

Mas eu falava duns tempos de Itamar Franco. Fernando Henrique eleito para hum mil novecentos e noventa e quatro e de repente teu sumiço (depois da porta trancada por dentro que nunca tive coragem de abrir, que nunca terei vontade de abrir, naquele momento precisávamos disso) e um oco no coração que batia ainda inocente. Era cedo para cerrar os dentes e lidar com tua ausência. Ausência que nunca foi de fato presente, pai. É essa distância (e o medo!) que me permitem acordar cedo e, antes de tomar café, acender um cigarro ainda deitado. Tudo porque não sei lidar. Nunca soube. Quando a gente.

A lembrança mais antiga: andávamos de bicicleta, tu guiando. Eu me equilibrava num assento fixado no guidom, e te olhava: Não olha pra trás, tu me dizias. [Atrás ficava o caminho, a estrada]. Eu olhava e via o que vias. Eu olhava para saber o que sabias: que para chegar adiante é preciso acordar cedo, é preciso ser direito, é preciso ter um amor (ou dois) e prestar atenção à hora marcada.

Foi por isso que não te deixei entrar, pai.

Não precisávamos de quase nada. Talvez de mais tempo. Os anos passaram depressa e não foi difícil nos perdermos nas datas, nos aniversários, em inquietações e abalos. Um dia, peguei uma faca que achei no barro. Passei no dedo para ver se cortava. Disseste que não o fizesse, que ia me machucar, disseste para deixar daquilo. Insisti. A lágrima de sangue mostrava que estavas certo. E eu mostrava como ignoraria todo e qualquer conselho que fosse para o meu bem.

Uma sensação estranha e desconfortável sobre a cafonice: ontem percebi, afinal, como a vida é cafona, assim como a morte, assim como o amor. E penso que se voltaram os jeans novos-velhos dos anos noventa, penso que a moda faz mais sentido, porque vai e volta, vai e volta, bocas-de-sino e mocassins: somos nós que perpetuamos a breguice, pai. Nós e nossa tendência ao ridículo, nossa e de todo mundo.

A culpa é do subúrbio, da luz que vai embora mais cedo naquele vale profundo. Ironicamente Progresso. A progressão do fim do mundo. Já não há mais pastos, estrebarias, chiqueiros e a calmaria de antes. A tranquilidade de acordar cedo para alimentar os bichos, para roçar o mato, para trabalhar aos quatorze e entregar todo o dinheiro para teus pais, o pagamento dos maus-tratos, pagar pelo silêncio que exigiste a tua vida inteira e que nunca foi respeitado.

Naquele tempo é que era bom. A vida funcionava, a vida acontecia. Diferente de agora, com tantas incertezas. Diferente de quanto a tristeza se podia enxergar nos teus olhos, mamando na teta de uma garrafa de cachaça barata, embalagem de plástico. Cigarros paraguaios ou brasileiros, mas baratos.

Deito na tua cama e me enrolo no travesseiro. Procuro teu cheiro e te encontro, pai.

Um erro certeiro da publicidade na propaganda de Gelol que aparecia em fim de tarde. Dizia: não basta ser pai, tem que participar. Ele buscava o filho na frente da escola e eu já não conseguia enxergar, os olhos nublados, tempestade vindo. A loucura era presente cotidianamente: o telefone não desligava, as janelas estavam fechadas e eu sabia que não virias, que nunca virias e não adiantava esperar. Foram anos de buraco no estômago e atraso no peito. Foram anos sentindo uma dor muda que somente compreenderia quando já não fizesse mais efeito qualquer tentativa de consolo, de entendimento, de anseio: isso de querer que os anos voltem já não tem remédio quando os obséquios foram cortados ao meio com uma faca sem fio.

A vida era pequena, pai. A vida que se vivia entre umas poucas vacas leiteiras e um tear de madeira em chão de fábrica. Um dedal, uma tesoura de tecelão, um pente de bolso; o que mais havia de secreto naquela gaveta secreta onde meus dedos de criança tateavam à procura de ti?

Ontem e de novo te soube passageiro dessa viagem inevitável. A timidez do nosso abraço dá conta de tanta vontade de apertar ainda mais o laço que nos desune? Se a vida não presta, onde pedir reembolso? Meto as mãos nos bolsos à procura de cigarros e te encontro escondido, pai. Te guardo ali para te proteger de ti mesmo. De mim. Do que está por vir e do que não virá a ser.

Então concordo contigo que o metrô anda mais rápido que o avião: tuas certezas só dão conta de mostrar a beleza que existe aí dentro. No silêncio que espera a hora certa. Não adianta que me respondas sobre a circunferência da Terra se ainda não me disseste se isso são realmente horas de ir ou se as despedidas devem ou não ser eternizadas naquele canto da memória em que tão facilmente depositamos tristezas. Naquele canto em que a vassoura não chega e é sempre tão difícil de limpar.

Como se chamava tua mãe, qual a idade de cada um dos teus irmãos, o que acontecia quando nascias em hum mil novecentos e cinquenta?

Lembrei que mais havia na tua gaveta: os tampões de ouvido - metáfora pronta. Fazia muito barulho na fábrica? A fábrica que te roubava todas as noites, pela qual dormias todas as tardes, onde passaste quase trinta anos te dirigindo religiosamente. Qual o nome desse deus? Era por isso que parecia, muitas vezes, que não existias?

"Vais acordar o pai com esse barulho"

E o pai dormia: depois do almoço até de tardezinha, a casa silenciava em respeito profundo. Ali dormia um homem que trabalhava. Um operário que trocava seu tempo de vida comigo por engrenagens que dominava. A fábrica, tua segunda casa, era maior do que a cidade. A fábrica era maior que o mundo!

E nos engolia com seus presentes de natal, com os relógios de ouro-falso depois de 25 anos perdidos, com o retalho em final de mês, com a piscina onde nunca entraste, com a primeira biblioteca onde tive o prazer de entrar.

Não me querias lá, eu sei. Não me querias de novo tu. [Havia um trenzinho que andava por todos aqueles prédios e onde, acredito, diziam "Aqui é a fiação", "Aqui fica a tecelagem", onde então poderia saber o que sabias, ver o que vias, respirar aquele ar de poeira de algodão e fumaça de fim de tarde]. Havia um passeio para dentro da fábrica e nunca me levaste a conhecer.

Há mais teares nos meus poemas do que palavras de amor.

Há mais enguiços do que exageros: quantos janeiros passamos?

A máquina precisa funcionar, a máquina precisa funcionar direito.

Terá chegado o nosso fim? Eu vim tarde e demorei a te reconhecer. Como contar o tempo? 34 verões teus, 31 verões meus, 64 verões teus neste meu agora? Não acho certo que vás embora antes de eu ter tua idade quando cheguei por aqui. Não acho certo que vás embora antes de voltarmos ao circo, antes de voltarmos a Curitiba, antes de voltamos ao momento em que me chamaste a primeira vez de teu amigo. Nada volta nunca, pai. Só aquilo de que temos medo.

A ratoeira se armou, mas quando? Eu também provoco o destino. Eu também faço de conta que não ligo, mas isso não passa de fingimento nosso; fosse assim, não me abraçarias no meio de tanto choro quando eu disse que me sentia sozinho, que ela voltasse pelo menos um pouquinho, tu me abraçavas e dizias silêncios cujos conselhos sigo sempre que posso. A armadilha está armada e quanto mais o tempo passa, mais rápido o tempo passa, mais a mola estica, mais o arame cintila pronto para desarmar.

Te procurei em cada garrafa, pai.

Depois, quando soube, preferi beber Antarctica porque era a tua favorita. Preferia a noite ao dia, como quando o trabalho te roubava. Mas eu não consigo ser parecido contigo: não tenho ou terei esposa e três filhos e em vez de construir uma casa escrevo livros que te vejo ler, mas nunca sei se realmente entendes.

Há mais de ti nos meus escritos do que eu de fato gostaria. Por isso, necessariamente, silêncios. Por isso, necessariamente, poesia.

De repente, tudo acaba. Menos nossa falta de jeito pra abraçar e encostar peito com peito. Menos nossa timidez bandida, que transforma em desejo de quem sabe um dia. Te direi, quem sabe um dia, meus segredos mais profundos, os meus medos mais profanos; te direi que não passou de engano quando acreditei que conseguia passar as noites sem dormir. Exatamente como esta noite. Exatamente como agora: ponho a cabeça para fora da janela em busca de vento. Não cabemos neste apartamento, pai: todos os tus, todos os eus, é preciso tomar ar.

A pergunta que se repete: o que resta depois disso? O que fica, independente da ausência?

Eu ainda não tinha idade para entender o que se passava. Chegaste em casa e não eras tu, eras menor, pequenino do tamanho da minha mão. Contavas de não sei quem que tinhas visitado e que havia te mostrado uma panela de feijão com um punhado de bagos. Aquilo era ralo, aquilo era triste. Eu ainda não tinha idade para entender que também eu manteria a calma e deixaria para chorar em casa, quando já ninguém ouvisse. E eu choro o punhado de ti que ainda existe. Isso tudo que é ralo e que me esforço para demonstrar que.

Não suporto formaturas, não suporto festividades, desespero diante dos desfiles cívicos pelo tanto de heroísmo que deveria haver ali e nunca há: te procuro, sempre te procurei. Como naquele domingo corrida da fogueira, em 1992, cheguei em último: eu queria um abraço de conforto, eu queria que juntasses aquele eu formado de escombros — eu era tão pequeno, pai!, eu não sabia de nada da vida, eu aguardava já por algum momento em que o silêncio se sobrepusesse às tuas noites de trabalho, aos teus dias inflamados pela bebida. Quando perguntam, quase desespero para explicar que a violência que havia não era de socos, de pontapés, de palavras encardidas: te perdi para teus olhos azuis que, penso, olharam para dentro quando eu precisava que olhasses um pouco para mim e para a minha vida.

Eu ainda não estava pronto.

Eu ainda não estou pronto para adeus, para até logo, para qualquer palavra de despedida que não seja um sonoro FICA, PAI!, existem segredos pelo caminho que precisamos desvendar juntos, existem mistérios, eu preciso de contar dos meus sonhos, eu preciso te ouvir falar de quem éramos e de quem nunca somos, e por que motivo. Então por isso essas linhas que não sei ainda se chegarás a ler. Não sei quanto tempo temos de vida, quantos abraços, quantas partidas: hoje somente adivinho no teu silêncio o medo diante da desconhecida.

E a garganta, começou a incomodar realmente quando?

Será que aos quatorze anos, quando começaste a trabalhar na fábrica e o soldo era dado de bandeja pros teus pais? Ou será que no casamento, quando não tinhas coragem de desistir da tua família, aquela tua família que te tomava o soldo, para formar outra, a outra família, aquela em que me vejo nuns domingos de chuva, frio e cobertas, todos juntos. Não. Trabalhavas também aos domingos. Não podíamos fazer barulho: “Vais acordar o teu pai”. Quando ainda não te conhecia, achei que passarias a vida dormindo. E agora que vais finalmente dormir, acho que entendo a saudade que reprimi desde tão cedo.

Era eu quem te acordava às nove da noite. Montava em ti e dizia: acorda, pai. Acorda. Pai, acorda. Acorda, pai. Então me explicavas que estavas acordado e o que eu tinha de dizer era levanta. Então dizia: levanta, pai. Pai, levanta. Levanta. Levanta, pai. E tu levantavas: homem, grande, com cheiro de cigarro que nunca se desprendia. Neste tempo eu ainda não fumava. Neste tempo, o teu cheiro fedia. Só depois seria bálsamo, remédio e poesia.

Hoje era dia das mães e pensei que aquele cheiro que me invadia as narinas enquanto almoçávamos era já o cheiro da morte, o cheiro doce da composição da carne — de um homem vivo. Depois de nauseado foi que descobri tratar-se do perfume da mãe. Foi por isso que deixei a mesa de repente. Foi por isso que me demorei a te abraçar, pai. Nos meus cálculos imaginários eu fiquei pensando que faz 22 anos que tu te foste, 12 anos faz que voltaste, nos despedimos já há mais de uma década, são tudo números, mas depois que nos despedimos (não, não vou chorar na tua frente porque não merecemos uma patetice dessas) foi que percebi que não há valor que descreva o sem-tempo-infinito de um abraço curto, porém verdadeiro, de quem sente medo, de quem sente saudade.

Meu pai foi operário. Tecelão. Por 25 ou talvez 30 anos. Saiu, como muitos, quando as coisas deixaram de ir bem, ali pelo início dos anos 90. Foi recontratado com salário mais baixo, mesmo aposentado, porque sabia fazer muito bem o que fazia. Só nunca foi muito de falar. Ainda não é (pois que está vivo), e eu penso que todas as vezes em que disse meu filho como um pai a falar meu filho, reconhecendo o filho, querendo-o, posso contar numa mão, quem sabe duas.

Mas pai, a voz já vai embora de ti e o que se houve são ruídos. O meu esforço é para que sintas ouvido, mesmo que não. Hoje jogam o Joinville o a Chapecoense, me disseste. Em São Paulo jogam Corinthians e Botafogo. Mas logo não haverá futebol para se comentar. Falaremos então de quê? Que sabe te pergunte se dói. Quem sabe te pergunte se dói ver o final da vida. Estás cansado?

Pergunto aqui pra mim o que se passa, se a morte é quente ou fria quando te abraça, se é que abraça, se é que há morte, vida a gente sabe que há. Vida? Bondade a nossa: se trabalhar até a aposentadoria, se aposentar para esperar a morte, se morrer levando nada dessa vida — a não ser, claro, silêncios. A não ser — quem diria! — saudade do não-vivido, cantos de pássaros, nuvens revoltas e céu azul de calmaria.

Ouço histórias de outros filhos e não te encontro. Ouço histórias de famílias antigas e te procuro, um lugar onde se encaixe Alfredo Labes: será nesta nossa agonia em comunhão? Não duvido. Memória é tiro de canhão, memória faz doer o ouvido como quando venta no frio, como quando fugíamos, Vinícius e eu, para nos banharmos no rio. Tu não sabias. Quando a mãe descobriu e achávamos fosse acabar o mundo, o pai se resignava e não se conseguia saber o que pensava, porque não se podia ouvir o que dizia.

O silêncio incomoda e atrapalha. Pelo menos há ainda os braços para os abraços, a cabeça onde te deposito beijos. Pelo menos há as fotografias que resistiram ao tempo e à tua resignação em sorrir para a câmera. Mas não se pode dizer de ti que foste um homem amargo. Porque não era amargo o homem que se encostava no balcão de cada boteco que conhecemos juntos a contar histórias, a reclamar da vida, a repetidamente se mostrar um pai honrável, um esposo machista, um homem saudável.

“Quer mais um? Bota outra laranjinha pra ele”.

Quando o frio batia e eu me escondia nas cobertas e tu não vinhas me dizer boa noite, tu não vinhas falar dos teus dias, eu seguia acreditando que talvez um dia: um dia ele aparece e me conta tudo, eu me dizia. Um dia o pai senta aqui do meu lado e me conta como era ser criança numa Alemanha que a Alemanha já não sabia que existia; quem sabe uma novidade sobre aqueles anos longínquos?

Eu remexo minha memória atrás de saber pequenezas: se tinhas os pés calçados quando a geada embranquecia o pasto, se tinhas meias de lã, como era a cama em que dormias, que esperavas do ano 2000 e se acreditavas que essa hora fatalmente chegaria. Se te reconstruo, vejo palavras cruzadas que nunca foram preenchidas. Jogo dos sete erros em que o primeiro foi termos nos afastado, nunca termos nos aproximado, ainda mais agora que. Eu ainda penso, como quando criança, eu ainda tenho alguma esperança e me digo: quem sabe um dia o pai senta aqui do meu lado e me conta das coisas, me explica e me ensina:

como ser homem, como trabalhar com vigor, como não perder tempo com besteiras, poemas, palavras de amor; como temer a deus sem saber direito do que se trata, alimentar os bichos, tirar leite da vaca, cavar direito um buraco, parafusar no teto, acertar o ângulo de uma escada; qual o pássaro que tira férias na primavera, qual procria, qual canta o canto mais bonito — como ser filho, irmão, esposo e pai de três filhos.

Como se organiza o que não se viveu, me pergunto. Como se relembra o que se esqueceu? Como se conhece quem nunca se conheceu de verdade? Te conheço de CPF, de número de identidade; posso pesquisar a placa daquela Variant verde-abacate e será só. Me pergunto: isso? Não vais deixar nem indícios de onde te possa buscar quando já estiveres por perto? Sei que a tia tem umas caixas de fotografias no sótão, sei que que a tia — pai, quando foi que nos desfizemos de nós mesmos e nos permitimos ser tão pouco?

Eu queria era te render homenagens, priorizar as grandiosidades dessa tua vida simples. Não sei se consigo, mas tento. Direi: meu pai nunca se rendeu a sapatos, nunca se rendeu ao jeans, nunca assobiou disparates. Meu pai tinha medo de comunistas, meu pai tinha um relógio preciso no pulso, nunca se atrasava, nunca se adiantava, hoje eu vi a ansiedade, pai, a outra funcionária olhando para o relógio ponto e contando os minutos, contando um minuto, então ela me diz que ainda não são dezessete e cinquenta e eu meto o dedo para o aparelho captar a digital do meu indicador direito, o aparelho apita, eu digo que um minuto deus perdoa e ela me pergunta: SERÁ? Se Deus perdoa, o chefe de setor não. Se Deus perdoa, mas o gerente não. Se Deus perdoa — seja lá do que se trata isso, esse — a gente não se perdoa nunca, pai, seja pelo atraso da entrada, por querer e precisar sair antes — a gente, não, tu nunca te perdoaste. Eu faço o meu caminho e atravesso muros com a cabeça, atravesso paredes, eu nunca sei onde vou chegar desse jeito, espero que não muito longe, retornar é sempre mais cansativo que partir.

Olha, eu talvez tenha de pedir desculpas. O momento exige, não? Quando as pessoas que me conhecem daqueles tempos (menos Daniel, que partiu cedo) ainda me perguntam e afirmam e fazem que sim com a cabeça quando dizem que foi bom eu ter te perdoado por aqueles tempos, a mãe sozinha, a loucura batendo à nossa porta, o alimento que mais faltava naquelas anos 90 era um homem em casa, um pai presente, uma vida normal cheia de atribulações e choros da mãe e gritos de madrugada e os irmãos seguindo a vida — eles podia seguir a vida, pai, eles tinham idade pra isso — mas depois que te foste não quantos anos demoraram até chegar novamente a calmaria, que nunca chegou, até chegar aparentemente alguma sanidade, talvez caiba melhor assim, alguma sanidade aparente para nos demover da loucura em que nos pusemos.

Talvez eu deva te pedir desculpas por quando andavas sóbrio, compenetrado na tua vida e no teu silêncio, eu chegar cambaleando em casa, sorrindo, chorando — te agradeço por aquela manhã só nossa daquela segunda-feira chuvosa em que foste pai como nunca, aquele abraço, aquela compreensão com os bêbados que adquiriste nos bares (quantos homens já abraçaste enquanto choravam como fizeste aquele dia comigo? Fui trabalhar de ressaca e comovido por umas poucas palavras tuas. Eu dizia que sentia saudade, pai. Eu dizia que sentia saudade de uma mulher que eu mesmo afastara de mim, da minha vida, desta cidade e tu me disseste, uma primeira vez, que me compreendias. Mas eu falava de pedir desculpas por chegar naquele estado às três da manhã, às duas da tarde, fingindo sobriedade para que não te provocasse o vício. O vício era eu, ali, insubmisso, caminhando de lado a lado, procurando nos meus sonhos algum alívio. Depois retorno às desculpas.

Uma lembrança e é a do Dodginho. Depois soube que foi pouco tempo. Nunca soubeste dirigir e trago isso comigo: passei os vinte, passarei os trinta sem sentar atrás de um volante: há coisas que se aprende de jovem, disseram; ele dirige melhor do que o pai, eles disseram, mas eles não falavam de mim, pelo contrário. Eles falavam como para demonstrar que eu sempre estaria aquém de qualquer adolescente estúpido, espinhento e imaginário: o ideal de idade adulta das pessoas varia conforme varia a propaganda. A idade adulta é, na verdade, quando se descobre que já nos encurtaram as mangas e já não temos mais cartas que jogar. Puseste a tua roupa no varal? Deixa que eu coloco. Nunca. Deixa que o pai coloca, assim, na terceira do plural: o pai sempre foi ele, o outro, alguém sempre e cada vez um pouco mais distante: deixa que o pai coloca a roupa no varal. Eu te ajudo. Deixa que eu te ajudo.